Pessoas trocam cidade para empreender no campo na pandemia
Novos empreendedores aliam venda de alimentos orgânicos e ecoturismo a moradia em paisagens mais tranquilas; agro é setor pouco afetado, diz pesquisa de Sebrae e FGV
Raisa Moura, de 35 anos, começou a dar aulas de yoga online logo no início da pandemia do novo coronavírus, em 2020. Paralelamente, atuava como professora de ensino infantil em uma escola particular em Brasília (DF). Porém, há sete meses, decidiu pedir demissão do emprego e se mudar de vez para Aiuruoca, na Serra da Mantiqueira, no sul de Minas Gerais, para se tornar empreendedora em um terreno comunitário.
“Era um projeto de sonho antigo. Vimos que a pandemia era o momento ideal para sair da cidade, onde me sentia muito mais vulnerável. Avisei aos alunos sobre a mudança e a adesão se manteve”, lembra a professora, que cobra R$ 160 de mensalidade para aulas duas vezes na semana.
No terreno, que pertence à família de um dos moradores, Raisa e amigos produzem xarope de limão, que pode ser usado como suco, refrigerante (ao adicionar água com gás), chá e até no preparo de drinques alcoólicos. São comercializadas cerca de 50 garrafas por mês, cada uma a R$ 15.
O grupo ainda tem como renda a fabricação de brinquedos infantis em madeira. Em paralelo, está construindo chalés para turismo ecológico e produzindo alimentos orgânicos. “Vamos beneficiar os alimentos. Vender o tomate, por exemplo, em forma de molho ou desidratado com a nossa marca, Batuque na Mesa, que já tem até logo. Depois, pretendemos iniciar a produção de velas de cera de abelha”, explica.
A migração de moradores de cidades para as áreas rurais é descrita em estudos como neorruralidade. O fenômeno pós-industrial reúne indivíduos que buscam um novo meio de vida e trabalho que combine bem-estar, cuidados com a natureza e, eventualmente, novas formas de ação coletiva.
Sérgio Schneider, professor de Sociologia do Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que essa revalorização do rural se dá em um cenário em que a qualidade da vida urbana tem se deteriorado por problemas como poluição e violência. “A insatisfação das pessoas tem motivado o surgimento de novos negócios no campo”, destaca.
Segundo o professor, a pandemia acelerou o movimento ao trazer à tona uma nova visão sobre a saúde pessoal e o consumo de produtos que reforçam a biodiversidade, além de ter popularizado conceitos como trabalho remoto e anywhere office (escritório em qualquer lugar, em tradução livre).
Xarope de limão produzido em terreno comunitário pela empreendedora Raisa Moura e amigos, em Aiuruoca, na Serra da Mantiqueira, no sul de Minas Gerais. Foto: Rafael Agapio
“As nossas finanças, que ainda incluem as atividades profissionais de cada um dos cinco moradores, como as minhas aulas de yoga, são divididas igualmente em conta conjunta, independentemente do valor individual, e utilizadas para os custos gerais, como alimentação, internet e gasolina. O grupo se sustenta junto”, salienta Raisa, que sempre trabalhou com carteira assinada e chegou a ficar desempregada no início da pandemia.
Entre os desafios da nova vida como empreendedora, ela destaca a dificuldade para divulgar o trabalho, por exemplo, nas redes sociais, seja para prospectar novos alunos ou vender produtos. “Passei um perrengue em 2020 ao ficar desempregada e sozinha. É uma segurança estar em grupo. Sem contar que aqui a qualidade de vida é muito maior e o dinheiro gasto é menor. Estou agora falando com você e olhando para três cachoeiras”, celebra.
Desde março de 2020, o Sebrae, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), realiza pesquisas para mensurar o impacto da pandemia nos pequenos negócios. “Estamos na 13ª edição e chegamos a entrevistar cerca de 10 mil empreendedores no Brasil em uma única sondagem. Percebemos que o agronegócio é um dos setores que menos foi afetado”, explica Eduardo Santiago, gerente adjunto de Competitividade do Sebrae.
Segundo a última versão do estudo, publicado em novembro, os empreendedores do agro disseram que o faturamento caiu 11% se comparado com o período anterior à atual crise, sendo que a média de todos os setores é de 30%.
De acordo com Santiago, dados do Instituto Cepea, ligado à Universidade de São Paulo (USP), mostram ainda que no terceiro trimestre de 2021 havia cerca de 19 milhões de pessoas atuando no agronegócio no Brasil. “O número representa um avanço de 10% com relação ao mesmo período do ano anterior e 3,6% equivalente ao segundo trimestre do ano passado, o que reforça como o setor vem crescendo”, destaca.
Guaraná Agroflorestal Orgânico da Amazônia, produzido em Maués, interior do Amazonas, e fruto de parceria entre a Bio Territórios Agroflorestais e a Associação Comunitária Agrícola do Rio Urupadi (Ascampa). Foto: Marisa Weinz
Desenvolvimento sustentável da Amazônia
Esse crescimento é percebido pelo engenheiro agrônomo Ramom Morato, de 36 anos. “Tenho observado um movimento de pessoas procurando trabalhar com a agrofloresta, em busca de uma vida mais rural. É uma tendência e estamos sendo demandados para isso.”
Ele e o engenheiro florestal Eric Brosler, de 34 anos, são de cidades do interior de São Paulo e hoje vivem em um sítio em Maués, interior do Amazonas. Com a pandemia, ambos saíram das instituições em que atuavam para fundar a Bio Territórios Agroflorestais, que presta serviços de consultoria em sistemas agroflorestais e tecnologias sustentáveis.
“Decidimos cair de cabeça junto a algumas associações para fortalecer a cadeia do guaraná, que é muito tradicional por aqui. Troquei o salário estável para fazer aquilo em que acredito”, diz Ramom, que também é produtor de vídeos e mostra a realidade dos povos da Amazônia na internet.
Hoje, os amigos trabalham em conjunto com famílias de comunidades ribeirinhas e indígenas, auxiliando tecnicamente na promoção da agricultura sustentável, que leva em consideração não só o aspecto ambiental, como também o econômico e social.
Paralelamente, têm um sítio com três hectares de sistema agroflorestal plantado, com diversas culturas locais, e estão fundando o Epicentro Agroflorestal da Amazônia. A ideia é usar o espaço como renda extra para a formação de pessoas, intercâmbio entre pesquisadores e interessados na vivência da floresta.
Uma das associações que a Bio Territórios presta serviços é a Associação Comunitária Agrícola do Rio Urupadi (Ascampa), considerada a maior produtora de guaraná de Maués, composta por cerca de 50 famílias. A parceria deu origem ao Guaraná Agroflorestal Orgânico da Amazônia, um produto em pó orgânico que é vendido para todo o Brasil.
Negócios além da agricultura
Movimentos migratórios têm sido cada vez mais observados por especialistas que atuam em áreas rurais. Segundo Ivan André Alvarez, pesquisador da Embrapa Territorial, os brasileiros estão enxergando oportunidades de negócios no campo para além da agricultura, em áreas como turismo rural, ecoturismo, gastronomia, saúde e serviços ambientais. Muitos, inclusive, costumam diversificar a renda com mais de um empreendimento.
Embora ainda não existam estatísticas sobre esse tipo de êxodo urbano, a tendência, que cresceu na pandemia com a procura por mais qualidade de vida, ocorre em diferentes regiões do Brasil e é mais frequente em áreas conhecidas como periurbanas, próximas aos centros urbanos. Um exemplo, de acordo com o pesquisador, é o Circuito das Frutas, região composta por dez municípios de São Paulo, como Atibaia, Jundiaí e Vinhedo, que abarca atividades e atrativos turísticos vinculados à produção agrícola.
“As tecnologias, como a internet, também têm contribuído para que mais pessoas migrem para o campo, ao encurtar distâncias, reduzir a necessidade de muita mão de obra e aumentar o leque de oportunidades de negócios”, explica.
Augusto Pinto, de 59 anos, trocou a capital paulista por Gonçalves, no interior de Minas Gerais, depois que colocou o espaço anexo de seu sítio para aluguel no AirBnb. Foto: Pedro Mendonça
Foi o que observou Augusto Pinto, de 59 anos, ao colocar para locação no site AirBnb um contêiner subutilizado de seu sítio, construído inicialmente para receber familiares, seguindo a tendência do glamping, espécie de camping com glamour que emergiu no País. A iniciativa fez tanto sucesso que as reservas para os finais de semanas já estão fechadas até abril deste ano.
A ideia do negócio surgiu em parceria com a esposa Denise Delalamo, mas somente Augusto saiu da capital paulista para morar em Gonçalves, no interior de Minas Gerais, onde a propriedade está localizada. O chef de cozinha trocou a vida na cidade pelo campo em janeiro do ano passado e, hoje, colhe os frutos de um negócio lucrativo e de uma vida mais tranquila, próxima à natureza.
“Com a pandemia, observamos que as pessoas estavam procurando lugares para se distanciar e trabalhar. O espaço passou a ter uma necessidade de gestão, com limpeza, organização e receptivo. Foi aí que vi a oportunidade de me mudar”, lembra ele, que não tem funcionários e ainda atua como personal chef no local, além de produzir alimentos orgânicos para consumo próprio. “O hóspede me vê colhendo o limão-siciliano na árvore para fazer o tempero do peixe, o que gera também uma experiência cultural, além de gastrônomica”, complementa.
Para a construção do contêiner, o casal investiu cerca de R$ 150 mil. As diárias custam R$ 650 e o serviço de personal chef gira em torno de R$ 150 por pessoa. Ao todo, os empreendimentos rendem um faturamento mensal de cerca de R$ 20 mil.
De acordo com o empreendedor, que viu o restaurante em que era contratado fechar no início da pandemia, está valendo a pena. “É diferente trabalhar para os outros e ser o dono do negócio. Toda a responsabilidade é sua, ou seja, relações com clientes, órgãos públicos e fornecedores. Mas é uma opção de vida. Para uma pessoa da minha idade, com as minhas necessidades, é quase uma aposentadoria. É menos do que retirava antes, mas é mais do que preciso para viver.”
Iniciativas fortalecem pequeno produtor
Raimunda da Costa Silva, de 56 anos, saiu de Jundiaí, no município de São Paulo, para empreender em um terreno ocioso da família localizado em Estiva, Sul de Minas Gerais. “Trabalhei por 33 anos com merenda escolar. Depois que me aposentei, comecei a vender artesanato, mas, com a pandemia, as feiras fecharam. Sempre gostei de roça”, conta ela, que começou a plantar orgânicos em 2020 para complementar a renda.
Ao todo, a agricultora já investiu cerca de R$ 12 mil e iniciou as vendas no ano passado. “Foi difícil demais, porque tudo é muito caro. Tive que contratar mão de obra para mexer na terra, sem contar que o plantio é demorado. Mas se trabalhar com culturas diferentes, sempre tem produtos. Ainda não obtive retorno total do investimento, mas estou no caminho”, diz.
Entre os alimentos, há frutas, como pêssego e pitaya, legumes e verduras. A comercialização é feita no boca a boca e em redes sociais, por meio de grupos de Facebook, por exemplo. Hoje, ela mantém uma lista de clientes no Whatsapp, por onde envia as novidades e recebe encomendas, as quais entrega pessoalmente, em cidades como Jundiaí e a capital paulista, maior desafio do seu negócio.
A aposentada Raimunda da Costa Silva, de 56 anos, hoje vende alimentos orgânicos para escola em Estiva, Sul de Minas Gerais. Foto: André Laranjo Marques
Paralelamente, com apoio da Emater-MG (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), Raimunda fechou parceria com uma escola local para fornecer produtos para a merenda, como alface, pêssego, tomate e beterraba, por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), iniciativa do governo federal para promover o desenvolvimento rural e a segurança alimentar.
Somando pedidos avulsos e a parceria com a escola, a agricultora chega a faturar cerca de R$ 3 mil ao mês, dinheiro com o qual consegue se manter mesmo sem a aposentadoria, uma vez que trabalha sozinha e só conta com apoio de um funcionário quando necessário.
Na visão da empreendedora, que está preparando a terra para expandir parcerias com outras escolas, ainda faltam incentivos por parte dos governos para levar os produtos aos grandes mercados locais. Outra dificuldade é o próprio gerenciamento do negócio. “Não tenho contabilidade, preciso aprender de tudo. Mas estou muito feliz e fazendo o que gosto. As pessoas falam que roça não dá dinheiro, mas dá sim, porque ninguém fica sem alimento”, afirma.
Para fortalecer o empreendedorismo no campo, o Sebrae atua diretamente junto aos produtores rurais por meio de iniciativas diversas, como o Empretec Rural, uma vertente do já conhecido Empretec, e o Agente Local de Inovação (ALI). Ano passado, a entidade levou o ALI Rural para sete estados, com o intuito de estimular a adoção de medidas de inovação, seja no planejamento do negócio, na adoção de novos canais de comercialização e de ferramentas digitais.
“Fazemos articulações junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e ao próprio Congresso para tentar acabar com entraves burocráticos e facilitar a regularização e a comercialização de produtos. Outro desafio é a digitalização dos negócios, como a aproximação com marketplaces, e até mesmo problemas de conexão em alguns territórios. Temos reparado certa evolução, como o surgimento de AgriTechs (startups focadas no cenário agrícola). O meio rural está repleto de inovação”, finaliza o especialista do Sebrae.
Com Estadão