A maior surpresa da guerra da Ucrânia pode cair no colo de Putin, diz colunista
A guerra na Ucrânia ainda trará consequências inesperadas e poderá reduzir a fonte do poder russo
THE NEW YORK TIMES – Aqui vai um fato surpreendente: num momento em os americanos não conseguem concordar virtualmente a respeito de nada, existe uma consistente maioria a favor de conceder ajuda econômica e militar à Ucrânia em sua luta contra o esforço de Vladimir Putin de varrer o país do mapa. Isso é duplamente surpreendente se considerarmos que a maioria dos americanos não conseguia nem sequer localizar a Ucrânia no mapa poucos meses atrás, já que se trata de um país com o qual nunca tivemos nenhuma relação especial.
Mas sustentar esse apoio será duplamente importante, já que a guerra na Ucrânia se assenta numa fase tipo “sumô” – com dois lutadores gigantes, cada um tentando empurrar o outro para fora do ringue, e nenhum deles disposto a desistir nem capaz de vencer.
Ainda que eu espere alguma erosão, à medida que as pessoas percebam o quanto esta guerra está elevando os preços da energia e dos alimentos globalmente, ainda tenho esperança de que uma maioria de americanos segurará as pontas até que a Ucrânia seja capaz de recuperar sua soberania militarmente ou de alcançar um acordo de paz decente com Putin. Meu otimismo no curto prazo não decorre da leitura de pesquisas, mas da leitura da história – em particular, do novo livro de Michael Mandelbaum The Four Ages of American Foreign Policy: Weak Power, Great Power, Superpower, Hyperpower (As quatro eras da política externa americana: potência menor, grande potência, superpotência, hiperpotência).
Mandelbaum, professor emérito de política externa americana na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins (escrevemos um livro juntos em 2011), argumenta que, apesar de as atitudes dos Estados Unidos em relação à Ucrânia poderem parecer absolutamente inesperadas e inéditas, elas não são nada disso. Consideradas no contexto do arco da política externa americana – que este livro narra de maneira envolvente pelas lentes das quatro relações de poder que os EUA mantiveram com o mundo – essas atitudes se mostram, na realidade, bastante familiares e previsíveis. Tanto que, se Putin e o presidente da China, Xi Jinping, lessem o livro, ambos se beneficiariam.
Ao longo da história americana, nosso país oscilou entre duas abordagens gerais em relação a política externa, explicou Mandelbaum em entrevista ecoando um assunto crucial em seu livro: “Uma delas dá ênfase ao poder, ao interesse nacional e à segurança – e é associada a Theodore Roosevelt. A outra coloca a tônica na promoção dos valores americanos – e identifica-se com Woodrow Wilson.”
Ainda que essas duas visões de mundo com frequência se rivalizem, a coisa nem sempre foi assim. E quando uma questão de política externa desafia tanto nossos interesses quanto com nossos valores, ela aciona uma resposta certeira, capaz de dispor de apoio público amplo, profundo e duradouro.
“Isso aconteceu na 2.ª Guerra e na Guerra Fria e parece estar acontecendo em relação à Ucrânia”, notou Mandelbaum.
Mas a enorme questão é: Por quanto tempo? Ninguém sabe, pois as guerras seguem rumos tão previsíveis quanto imprevisíveis.
O caminho provável em relação à Ucrânia é que, à medida que os custos se elevem, a discórdia aumentará – tanto nos EUA quanto entre nossos aliados europeus – sob a argumentação de que nossos interesses e valores estão mal equacionados na Ucrânia.
A dissidência argumentará que não somos capazes nem de arcar economicamente com o apoio à Ucrânia até o ponto em que o país vença totalmente a guerra – por exemplo, expulsando o Exército de Putin de cada centímetro da Ucrânia – nem estrategicamente, porque, afrontado por uma derrota total, Putin poderia apelar para armas nucleares.
Já foi possível detectar sinais nesse sentido no discurso do presidente da França, Emmanuel Macron, no sábado, quando o líder francês declarou que a aliança ocidental “não deve humilhar a Rússia” – uma fala que suscitou uivos de protesto da Ucrânia.
Comprometido com a vitória
“Todas as guerras na história dos EUA provocaram dissidência, incluindo a Guerra de Independência, quando os que discordavam se mudaram para o Canadá”, explicou Mandelbaum. “O que nossos três maiores comandantes-chefes – George Washington, Abraham Lincoln e Franklin D. Roosevelt – tiveram em comum enquanto presidentes em tempo de guerra foi sua habilidade em manter o país comprometido com a vitória, apesar da discórdia.”
Isso será um desafio também para o presidente Joe Biden, especialmente quando não existe nenhum consenso entre os aliados, nem na Ucrânia, a respeito do que seria a “vitória” nesta guerra: será alcançar o objetivo atualmente declarado por Kiev de recuperar cada centímetro de território ocupado pela Rússia? Será possibilitar à Ucrânia, com a ajuda da Otan, aplicar um castigo tão severo ao Exército russo até que Putin seja forçado a um acordo que resulte em concessões, e ele continue ocupando território? E se Putin decidir que não quer nenhuma concessão – e, em vez disso, quiser que a Ucrânia sofra uma morte lenta e dolorosa?
Nas duas guerras mais importantes da nossa história, a Guerra Civil e a 2.ª Guerra, afirmou Mandelbaum, “nosso objetivo foi a vitória total sobre o inimigo”. “O problema para Biden e nossos aliados é que nosso objetivo não pode ser uma vitória total sobre a Rússia, pois isso poderia provocar uma guerra nuclear. Mas, ainda assim, algo parecido com uma vitória total pode ser a única maneira de impedir Putin de fazer a Ucrânia sangrar eternamente.”
O que nos leva ao imponderável: depois de mais de 100 dias de combates, ninguém é capaz de prever como esta guerra acabará. Ela começou na cabeça de Putin e provavelmente acabará apenas quando Putin disser que quer que ela acabe. Putin provavelmente sente que está dando as cartas e o tempo está ao seu lado, pois é capaz de aguentar mais castigo do que as democracias ocidentais. Mas grandes guerras são coisas estranhas. Seja qual for o modo que elas tenham começado, elas podem acabar de maneiras totalmente imprevistas.
Permitam-me oferecer um exemplo por meio de uma das citações favoritas de Mandelbaum, da biografia que Winston Churchill escreveu a respeito de seu grande ancestral, o Duque de Marlborough, publicada nos anos 30: “Grandes batalhas, vencidas ou perdidas, alteram totalmente o curso dos eventos, criam novos padrões de valores, novos humores, novos ambientes em exércitos e nações, aos quais todos têm de se conformar”.
Churchill quis dizer, segundo argumenta Mandelbaum, que “guerras são capazes de mudar o curso da história, e grandes batalhas com frequência decidem guerras. A batalha entre Rússia e Ucrânia pelo controle da região no leste ucraniano, conhecida como Donbas, tem potencial para ser essa batalha”.
E de muitas maneiras. Os 27 países da União Europeia, nossa principal aliada, constituem de fato o maior bloco econômico do mundo. Eles já se movimentaram decisivamente para romper laços comerciais e investimentos na Rússia. Em 31 de maio, a UE concordou em cortar 90% de suas importações de petróleo da Rússia até o fim de 2022. Isso não castigará apenas os russos, impingirá também um castigo severo sobre consumidores e industriais europeus, que já pagam valores astronômicos por gasolina e gás natural.
Mas tudo isso ocorre num momento em que fontes renováveis de energia, como solar e eólica, tornam-se competitivas economicamente em relação aos combustíveis fósseis – e num momento em que a indústria automobilística global eleva significativamente a escala de produção de veículos elétricos e novas baterias.
No curto prazo, nada disso é capaz de suprir a queda nos fornecimentos russos. Mas se tivermos um ou dois anos de preços astronômicos de gasolina e combustível para nos aquecer por causa da guerra na Ucrânia, “veremos uma aplicação massiva do investimento de fundos mútuos e da indústria em fabricação de veículos elétricos, melhorias em redes de transmissão de eletricidade e baterias de longo armazenamento, o que poderia livrar todo o mercado de qualquer dependência de combustíveis fósseis, em favor das fontes renováveis”, afirmou Tom Burke, diretor do Third Generation Environmentalism (E3G, ou Ambientalismo de Terceira Geração), um instituto de pesquisas ambientais. “A guerra na Ucrânia já está forçando todos os países e empresas a avançar dramaticamente com seus planos de descarbonização.”
De fato, um relatório publicado na semana passada pelo Centro para Pesquisa sobre Energia e Ar Limpo e pelo instituto Ember, que analisa o setor de energia globalmente e tem como base o Reino Unido, constatou que 19 dos 27 países da UE “elevaram significativamente suas ambições em termos de acionamento de energia renovável desde 2019, enquanto decresceram a geração planejada sobre combustíveis fósseis até 2030, para se proteger de ameaças geopolíticas”.
Um artigo publicado recentemente na revista McKinsey Quarterly notou: “As guerras navais do século 19 aceleraram a transição de embarcações movidas pelo vento para os navios movidos a carvão. A 1.ª Guerra ocasionou a transição do carvão para o petróleo. A 2.ª Guerra introduziu a energia nuclear como relevante fonte de eletricidade. Em todos esses casos, inovações de guerra fluíram diretamente para a economia civil e engendraram uma nova era. A guerra na Ucrânia é diferente no sentido de que não está ocasionando a inovação energética em si, mas está evidenciando sua necessidade. Ainda assim, o possível impacto poderia ser igualmente transformador”.
Que baita surpresa… Se esta guerra não destruir o mundo inadvertidamente, poderá inadvertidamente ajudar a preservá-lo. E, com o tempo, fazer encolher a principal fonte de dinheiro e poder de Putin. Não seria irônico? TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO.
*Thomas Friedman – É colunista e ganhador de três prêmios pulitzer. (Via Estadão)